VIII Congresso de Educação Artística, Funchal, 6,7 e 8 de setembro de 2017
josé carlos de PAIVA, Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto/i2ADS — Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade
Bom dia.
agradeço o convite, para esta minha presença aqui, não só pela oportunidade de poder voltar ao Funchal mas também por, assim, poder acompanhar os trabalhos deste VIII Congresso de Educação Artística, reconhecendo a importância que tem a sua organização, num momento onde a educação artística tão mal tem sido tratada.
meus cumprimentos à organização e aos membros deste painel, que aceitou abordar o desafiante tema escolhido.
Devo confessar, que o tema escolhido para esta sessão, me causou alguma inquietação, por não me permitir saber, à partida, como poderia encontrar um modo de trazer para este congresso, o que eu sou, essa intimidade, de trazer para a vossa presença as dúvidas com que lido, agora, e ao longo da minha vida, dedicada à arte e à principalmente à educação artística.
Apresento-me, com a minha voz lenta, que sai deste corpo cansado, jovem há já muito tempo, muito caminho trilhado, que tenta traduzir, aqui, o que a experiência acumulada, me permite entender, sobre a complexidade da arte, nestes conturbados tempos que vivemos, sobre a dificuldade em trazer a educação artística, para o merecido plano de reconhecimento social, da sua imprescindibilidade e de lhe conferir um terreno de prática educativa saudável que contribua para que as crianças e jovens possam vir a ser o que elas próprias entendam ser.
Com esta apresentação, declaro minha adesão à afirmação da imprescindibilidade da arte e acrescento com maior ênfase, a imprescindibilidade da educação artística.
Tentarei não usar palavras gastas, ou pelo menos distanciar-me do uso de palavras a quem foi retirado o sentido, que se naturalizaram, e que usamos no da-a-dia sem lhes medir a densidade.
Desde já apresento minhas desculpas por não saber alastrar o que vou dizer para além das referências do campo das Artes Plásticas, por não me atrever, para não escorregar ainda mais, entrar nos terrenos da Música, da Dança, do Cinema, do Teatro e do que integra a Educação Artística.
Assim, sendo franco e provocador, gostaria de chamar a atenção para uma visão, talvez controversa, de que a Arte, não deve ser entendida como um campo apenas constituído por manifestações humanas consideradas como as mais positivas, que suscitam uma respeitosa e generalizada admiração e exigem respeito social, por se integrarem num esforço promotor do melhor que há, poderia dizer, da liberdade, igualdade e fraternidade, para usar a grande bandeira progressista levantada na Europa no século XIX.
Apresento a arte, assim, como um campo de incerteza.
Proponho que se entenda a Arte como um campo controverso, plural, contraditório, onde se alojam propostas e propósitos díspares, onde a própria ideia de Arte, se pretende desmaterializar daquilo que a antecede, na busca de um olhar irreverente e indisciplinado perante ela própria, sabendo-se pertença de um tempo onde não entende bem o que quer enfrentar.
A arte sempre como uma inquietaste procura, de construção de si.
Lembremos como vão longe os tempos em que a arte se filiava na evocação dos deuses e na representação do poder, na ampliação da ostentação de reis e aristocratas.
Também os tempos onde se elegia o saber fazer e a mestria oficinal, vertidas para a representação da realidade, são passados.
Considere-se ainda o empenho de muitos artistas, ao longo de anos e anos, empenhados em práticas interventoras perante contextos sociais por si regeitados, para se entender ainda o modo como os poderes estabelecidos, em cada época, congelaram a sua impertinência, conviveram com a crítica e absorveram os impactos promovidos.
Entendendo hoje o contemporâneo como uma necessidade de afastamento para uma leitura crítica sobre o que se nos apresenta, e a arte contemporânea como um campo filiado nessa demanda, como uma inscrição na necessidade de se observar criticamente o ‘real’ para nele intervir, para o esclarecer, então, deparamos com um panorama complexo, senão esquizofrénico, onde a inscrição de muitos artistas vivos, se refugiam em modos passados de entender e assumir o artístico, alojados ainda no romantismo ou no modernismo, outros, então, escolhem o conforto e o usufruto que o presente lhes oferece, no terreno do espectáculo e da mediação do génio criativo, enveredando por uma prática artística inócua e hermética e que mais não produz que negócio, industria cultural, e vaidade.
Sendo verdade, que muitos artistas arriscam e assumem outros terrenos, desconfortáveis, irreverentes, interferentes no presente, procurando com seu trabalho acrescentarem outra possibilidades de este mundo poder sou um outro.
Resumindo o que pretendo reforçar, que o campo da arte não é um todo, mas um terreno controverso e contraditório que deve apelar a um entendimento crítico diversificado e corajoso, quer no modo como a arte se relaciona com as actuais encruzilhadas do tempo, quer no modo como cada um assume os desafios e a irreverência que deveria constituir o próprio cerne da arte.
Não quero esconder que o que digo se funda num desgosto pessoal pelo fracasso que o mundo persegue. E pelas fragilidades do artístico.
São milhares de anos de caminho da humanidade, que nos é apresentado como um percurso que nos trouxe da barbárie para a civilização.
Certo, mas, mesmo assim, trago para esta conversa o meu pessimismo.
O mundo ocidental, ao qual pertencemos, no século XXI, desapareceu como promotor do desenvolvimento, e enquanto referência de um sistema político decente, esperança de um mundo progressivamente mais equilibrado e melhor.
A ganância dos poderosos produziu um sistema financeiro globalizado, escondido e incógnito, que comanda, move políticas e condiciona governos.
Hoje o que nos domina é o medo perante a incerteza do futuro, desaparecendo todo optimismo propagandeado de um progresso sem fim.
O fracasso do tempo em que vivemos pode ser medido na dimensão desmesurada dos sem-emprego-e-sem-esperança, dos refugiados sem-espaço-e-sem-água, dos resíduos humanos sem-nome-e-sem-terra, dos novos remediados sem-futuro, e do medo e da insegurança.
Com a inquietação de me entender neste mundo, sendo nele implicado, que me assusta ver os discursos intensos que pretendem colocar a Arte, como um todo, num patamar sagrado, dos feitos gloriosos da humanidades que se soube transcender para uma actividade suprema, que sempre promoveu o bem.
Prefiro enfraquecer esta visão grandiloquente e trazer a Arte para o mesmo chão onde todos pisamos,
nas fragilidades e incoerências próprias de quem tenta, apenas tenta, produzir com a sua arte a sua presença no comum
uma presença significante, não como feito admirável e genial, mas como participação, como diálogo, assumindo as suas próprias insuficiências, promovendo a esperança num outro devir.
E é daqui, deste modo de encarar a arte e o que nos permitem viver, que me coloco perante a Educação Artística, situando-a numa encruzilhada entre o seu passado desconhecido que ainda não se exige ter de esclarecer, e uma necessidade de mudança.
Trago assim um propósito, levemente provocador, de propor pensarmos se, quando usamos a palavra ‘arte’ e, mesmo ‘educação artística’, não estamos a usar as palavras sem a dimensão controversa que elas comportam. Sem lhes conferir a sua própria dialética.
Seremos nós capazes de pensar que talvez tenhamos andado enganados no modo de pertencer à Educação Artística?
Não quero cansar com meu problemas, mas arrisco apresentar ainda quatro questões sobre a educação artística
Primeira questão:
entendemos nós a acção educativa, deslocada definitivamente das exigências de memorização, como um modo de criar possibilidades das crianças e dos jovens, de nossos estudantes, poderem vir a ser o que muito bem lhes conferir a sua própria vida, de poderem ser eles a estabelecer o seu amanhã, a construírem eles mesmos a sua Identidade?
ou, pelo contrário, com nossa acção professoral, o que pretendemos não é mais do que insistir na educação como um instrumento para produzir futuros adultos, os adultos que este mundo precisa, ordeiros, consumidores, bons eleitores e respeitadores da ordem estabelecida, sujeitos condicionados por regras e saberes que apenas produziram este mundo de injustiça em que vivemos?
Seremos capazes de entender a educação como um espaço democrático, dialogante com os saberes, as sensibilidades, os interesses singulares de cada sujeito.
Segunda questão:
Sabemos que a Educação Artística trouxe possibilidades novas de ampliação do carácter, de extensão dos pensamentos e das emoções, do desenvolvimento e da interioridade das crianças e dos jovens. Claro que sim.
Mas também sabemos o quanto a Educação Artística ordenou as tendências apelidadas de nocivas ao estado vigente, através da repressão e sublimação dos impulsos, das sensibilidades singulares e dos interesses existentes nas crianças e nos jovens, desde os impulsos sexuais, os ‘vícios’, e mesmo dos seus gostos.
Compreendemos o quanto a Educação Artística foi remetida para um papel de salvação dos seres ‘tresmalhados’, como se arte tivesse poderes mágicos e transformadores, confundindo-se a função, por exemplo, a ‘arte ocupacional’, com ‘arte terapia’
Saberemos nós verificar como a educação artística ao longo do século XX, se equivocou, na construção de sujeitos?, como promoveu mais a disciplina do que a autonomia? Pensemos o quanto a educação artística contribuiu para a construção de seres que se governam a si próprios a partir de grelhas de governamentalidade, contruídas pelos dispositivos de poder, onde o aluno é educado a exercer um policiamento sobre si mesmo?
Ou, num terreno mais particular, o quanto ela anulou o ‘corpo’, e contribuiu para inibir perante o desenho, perante o artístico, fomentando a visão romântica do artista como ser de excepção, retirando a cada um a possibilidade de uma relação natural com o artístico que cada um comporta, e que lhe confere um campo de interferência social?:
analisemos o quanto a educação artística se centrou na procura descriminatória dos génios que se destacavam, no desenvolvimento de habilidades onde a mão era a executora fundamental e onde o corpo e o cérebro pouco intervinham;
no desenvolvimento de um saber olhar o que se observava, sem lhe conferir o entendimento do que se apresentava, numa preocupação de encontrar os modos mais estéticos de representar visualmente a ‘realidade’;
De como se produzia por produzir, se promoviam banalidades, e se inibiam propósitos de partilha de acção e de saberes.
Terceira questão:
Saberemos resistir à sedução dos tempos? Estaremos atentos para resistir ao charme da sociedade que nos remete, através dos meios de comunicação social, da capacidade de criar desejos indesejados e evitáveis, de sermos ‘cultos’ e ‘frequentadores de museus’, admiradores dos artistas de culto, de sermos atraídos pela vertigem do ‘contemporâneo’ e do espectáculo?
Saberemos entender a vertigem da self-cultura-face e do poder que ela sobre nós exerce? .
Entenderemos nós a confusão presente, que se confunde com a adesão espontânea aos sedutores apelos de uma deriva inócua, à facilidade de um aparente contemporâneo, que inundam as escolas de rotinas ‘criativas’ que apenas prolongam um afastamento das possibilidades da educação artística ser um espaço performativo de experimentação sensorial significativa, que permita aos alunos a construção de si, num sentido simultâneo de pertença ao comum.
Quarta questão:
Estaremos nós, capazes e interessados em nos deslocarmos dos nossos saberes, das marcas que a nossa formação nos conferiu, para enfrentar uma outra prática educativa que integre a história do que nos antecede, mas lhe confira uma outra irreverência perante a arte e os tempos;
Seremos mesmo capazes de fazer diferente? Sabemos que isso exige pensar na escola como uma escola diferente.
Pelo menos ousemos pensar, para além do que já sabemos!
obrigado